A série “YOU”, da Netflix, conquistou o público ao mostrar a história de Joe Goldberg, um homem aparentemente gentil, atencioso e apaixonado, mas por trás dessa fachada de príncipe encantado, revela-se um perseguidor, controlador e assassino. O sucesso da série expõe, de forma inquietante, a romantização de comportamentos abusivos e o fascínio que muitas vezes se cria em torno do algoz. Essa narrativa não é apenas ficção, ela reflete dinâmicas reais de relações marcadas pelo machismo, pela misoginia e, em casos extremos, pelo feminicídio.
As mulheres vivem hoje em constante estado de alerta. Estão inseguras para confiar, para se relacionar, para simplesmente existir
No Brasil, essa realidade tem se mostrado brutal. Em Cuiabá, a menina Heloysa Maria de Alencastro Souza, de apenas dezesseis anos, foi assassinada brutalmente em um caso que chocou a capital cuiabana. Assim como Heloysa, outras seis mulheres foram vítimas de feminicídio em vinte e quatro horas no Rio Grande do Sul durante a Sexta-feira Santa, um dado alarmante que demonstra como a violência de gênero está naturalizada em nossa sociedade.
O que conecta essas tragédias ao enredo de “YOU” é a forma como tudo parece começar de maneira inofensiva, até encantadora.
O homem se mostra cuidadoso, interessado, protetor. O ciúme, a princípio, é interpretado como prova de amor, “ele se importa tanto comigo!”. Pequenas invasões de privacidade, manipulações sutis e controle disfarçado de cuidado vão se acumulando. Quando a mulher se dá conta, está presa em uma relação tóxica, e o que parecia amoroso se revela um ciclo de abuso que, muitas vezes, termina no ápice do assédio, o feminicídio.
As mulheres vivem hoje em constante estado de alerta. Estão inseguras para confiar, para se relacionar, para simplesmente existir. Esse medo não é infundado, é produto de um machismo estrutural que ainda permeia todas as esferas da sociedade. É o mesmo machismo que relativiza agressões, que pergunta o que a vítima estava vestindo, que tenta justificar o ciúme como sinal de paixão.
A série “YOU” escancara, mesmo que sem essa intenção declarada, o quanto estamos condicionados a enxergar certos comportamentos abusivos como demonstrações de afeto. Joe Goldberg, com sua aparência de bom moço e discurso sensível, simboliza o perigo oculto em uma cultura que naturaliza a violência contra a mulher e romantiza o controle masculino sobre suas vidas.
Ainda vivemos em uma sociedade onde a desigualdade de gênero é gritante. As mulheres continuam a ganhar menos, ocupar menos espaços de poder e serem mais responsabilizadas pelos fracassos das relações. Além disso, são minoria nos cargos de liderança política e empresarial, enfrentam maiores obstáculos para acessar educação de qualidade em várias regiões, e são freqüentemente invisibilizadas nas decisões que impactam suas próprias vidas.
Mulheres também têm sua autonomia constantemente ameaçada, sendo desestimuladas a denunciar abusos por medo da revitimização, e muitas vezes enfrentam um sistema de justiça que ainda as trata com desconfiança.
O caso de Heloysa Maria e o assassinato das seis mulheres no Rio Grande do Sul, são lembretes cruéis de que essa história, que começa com promessas de amor eterno, pode terminar em tragédia. Precisamos romper o ciclo. Precisamos enxergar o que está por trás do “cuidado” excessivo, do ciúme possessivo, das pequenas violências cotidianas que, juntas, formam a base do feminicídio.
Denunciar o abuso, desconstruir o machismo, proteger as mulheres e educar para o respeito e a igualdade não são tarefas opcionais, são medidas urgentes para que histórias como essas parem de se repetir.
E é fundamental reconhecer que enquanto persistirem as desigualdades entre homens e mulheres no trabalho, na política, na educação, na justiça e no espaço doméstico, a violência de gênero continuará a ser uma tragédia anunciada. Combater o feminicídio é, também, lutar para eliminar essas desigualdades em todas as suas formas.
Christiany Fonseca é professora no IFMT e doutora em Sociologia