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Atualmente, muita gente quer diagnóstico para obter vantagens

“Hoje tem muita gente querendo diagnóstico para obter vantagens. A sociedade ensinou que o diagnóstico é a porta para o acolhimento. Mas, quando vira moeda de troca, perde o sentido”.

 

É mais uma forma que a rede social tem de hackear nossas emoções, nossa natureza humana. E isso naturalmente gera angústia

A afirmação é do psiquiatra cuiabano Manoel Vicente de Barros, em entrevista exclusiva ao MidiaNews, e expõe uma distorção preocupante no cenário atual da saúde mental.

 

Com a popularização de transtornos como TDAH e depressão, cresce também a busca por laudos médicos não para tratar doenças, mas para obter benefícios: desde auxílios governamentais até justificativas para baixo desempenho profissional.

 

Graduado em Medicina pela UFMT e com residência médica em psiquiatria na Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais, Vicente explica que o sistema burocrático criou essa armadilha: sem um diagnóstico formal, o sofrimento individual é ‘sumariamente ignorado’ — seja na esfera pública, seja na privada.

 

O resultado: pais pressionam por laudos de TDAH para filhos garantirem acompanhamento escolar e adultos autodiagnosticados exigem medicações sem avaliação profunda.

 

Nesta entrevista, o psiquiatra detalha como as redes sociais “hakeiam” nossas emoções, os riscos desta cultura, como distinguir quem realmente precisa de ajuda de quem só busca um atalho e qual é a diferença entre trauma e transtorno.

 

Confira a íntegra da entrevista no vídeo abaixo e os principais trechos em seguida:

 

  

 

MidiaNews – O TikTok hoje em dia está cheio de autodiagnósticos de TDAH ou borderline, por exemplo. Como diferenciar um trauma mal resolvido de um transtorno de verdade na era da medicalização?

 

Manoel Vicente – Nós temos transtornos, disfunções ou temos traumas? A verdade, quando você vai olhar, é que a maioria dos transtornos é causado, ou tem uma grande contribuição, por processos traumáticos da vida.

 

Então, essa confusão dos diagnósticos se popularizando é boa porque diminuiu o estigma para as pessoas procurarem ajuda em saúde mental, para elas falarem do diagnóstico, mas parece que realmente virou quase uma conversa de bar. 

 

E os diagnósticos, na maioria das vezes, são meramente descrições. Mas a explicação está nesses processos que são mais únicos na história de cada um. Então, por exemplo: posso entender o trauma como causa de muitos problemas.

 

Mas que se a pessoa ficar na superficialidade das redes sociais, dos diagnósticos rápidos, vai ficar presa nessa descrição. Então ela sabe ter transtorno de ansiedade, mas não sabe explicar por que que tem tanto medo, por que tem tanta insegurança. É um desafio popularizar o diagnóstico.

 

MidiaNews – Podemos dizer que o Instagram virou uma espécie de vitrine emocional. Onde todo mundo é obrigado a parecer bem, feliz, viajando… Uma espécie de ditadura da felicidade, de certa forma. Qual o impacto disso na saúde mental?

 

Manoel Vicente – A ditadura da felicidade faz todo mundo só postar quando está feliz. Você que está vivendo sua vida normal e sabe que a vida não está tão perfeita assim. Isso causa uma sensação de: tô perdendo a minha vida, minha vida não faz sentido, uma sensação de inferioridade. Ela aperta bem no nosso gatilho da comparação.

 

Então essa ditadura da felicidade acaba jogando as pessoas mais para baixo ainda. E aí é complicado, pois todo mundo tem esse ponto fraco da comparação. Não há quem não tenha. E aí as redes sociais vão e ficam brincando com os nossos botões. Você quer aceitação social? Eu também quero. Qualquer ser humano quer. Desde bebê você quer aceitação social.

 

A rede social vai lá e aperta esses botões para fazer você se engajar. E ao mesmo tempo você está vendo os outros que também estão recebendo seus engajamentos. E aí você fica se comparando. Você entra numa disputa sem saber por quê. Você só entrou lá para postar foto de biquíni e dar bom dia.

 

Aí de repente está disputando engajamento com outra pessoa, está disputando foto de viagem com alguém. E aí todo mundo faz essa vitrine, porque aí as redes sociais são vitrines. Então, é mais uma forma que a rede social tem de hackear as nossas emoções, de hackear a nossa natureza humana. E isso naturalmente gera angústia.

 

 

MidiaNews – Você acha que atualmente pode estar havendo uma romantização de certos transtornos, como por exemplo o autismo, pois muita gente parece sentir orgulho de dizer que possui o aspecto artista?

 

A pessoa que está presa na psiquiatria cosmética acredita que não tem mal nenhum, que os remédios são ultra seguros. E isso, simplesmente, não é verdade

Manoel Vicente – Não vou dizer exatamente romantização. Existe todo um movimento identitário para diversas questões. As pessoas pegam aquilo que era estigma, que era motivo para afastá-las, trazem isso como identidade e vestem esse orgulho. Então, é um movimento identitário das neurodivergências, como TDAH, autismo…

 

Eu não consigo separar o autista do autismo. Então, fica muito mesclado com a identidade que a pessoa tem. E, aí, esses grupos vestiram essa camisa como forma de se reafirmar enquanto pessoas e como forma de lutar contra os preconceitos.

 

Agora, o que percebo que é uma romantização é quando as pessoas tentam se manter dentro de um padrão de comportamento, como por exemplo; alguém que não tem muito compromisso com o horário, com a organização, com a vida, mas nunca fez uma avaliação para saber se é TDAH e veste esse diagnóstico como uma justificativa para tudo que ela é. Aí eu sinto que passou da conta. Então, até certo ponto, enquanto falamos de pessoas que realmente têm o diagnóstico, estamos falando de uma coisa. Outra coisa é quando o diagnóstico engole todo o comportamento da pessoa, ela passa a justificar tudo por aí e trava a possibilidade de melhorar.

 

MidiaNews – Por outro lado, parece haver pessoas interessadas em serem diagnosticadas com algum transtorno para obter vantagens, inclusive junto ao Poder Público. Concorda?

 

Manoel Vicente – Concordo que tem isso, tem muita gente querendo diagnóstico para ter vantagem. O fato de uma criança ter dificuldade para estudar não faz ela receber, por exemplo, um professor de auxílio. Ela precisa ter TDAH, precisa ter um laudo para o Estado abraçar ela. A individualidade das nossas dificuldades não é suficiente para convencer o plano de saúde de que tenho uma grande dificuldade com relacionamentos e autoestima.

 

Se o plano de saúde olhar isso, ele vai rir e vai devolver. Ele quer que tenha laudado que você tem depressão. Se você não tem um laudo de uma classificação diagnóstica, seu sofrimento, sua individualidade, é sumariamente ignorado pelo sistema burocrático em todas as esferas. Esfera particular, esfera pública.

 

A forma como criamos a regra da sociedade é que para ter voz, para ter cuidado, para ser ouvido, tem que ter um CID (Classificação Internacional de Doenças). E aí todo mundo se adapta. Aí realmente, a mãe quer que o filho tenha um diagnóstico, porque se tiver, ela tem como receber um auxílio de alguma forma. Então, a sociedade criou linguagem de que o diagnóstico é a porta para o acolhimento.

 

 

MidiaNews – Vários psiquiatras criticam a chamada psiquiatria cosmética, ou seja, pessoas que não têm necessariamente depressão, mas usam antidepressivo para dar um “up” na rotina, para dar um up na serotonina. O que poderia falar a respeito disso?

 

Manoel Vicente – A psiquiatria cosmética é realmente um problema. É um problema muito grave, é algo que temos que lutar contra esse processo, do uso dos remédios psiquiátricos para trazer conforto emocional. A pessoa quer se sentir mais tranquila e usa uma medicação. Isso é desvirtuar completamente o papel das medicações, é tirar toda a seriedade do trabalho médico. Isso é uma diminuição gigantesca do que nós fazemos. Nós tratamos pessoas com disfunções, doentes, com problemas sérios que precisam de intervenções. E aí, você quer comer menos? Então toma um remédio para você comer menos. Você quer dormir mais? Toma um remédio para você dormir. 

 

Esse jogo que está acontecendo faz muita gente ficar mal sem saber. Por quê? A pessoa que está presa na psiquiatria cosmética acredita que não tem mal nenhum, que os remédios são ultra seguros. E isso, simplesmente, não é verdade. Não sabemos a extensão dos efeitos das medicações, não sabemos o que o uso crônico de determinado antidepressivo causa em cada pessoa. Então tem vários efeitos colaterais que passam despercebidos.

 

A psiquiatria cosmética acontece quando convencemos as pessoas de que os remédios são inofensivos, que só fazem bem e trazem bem-estar… Elas acreditam e ficam realmente se regulando por essas substâncias químicas. 

 

A desprescrição é o trabalho de deixar as pessoas bem sem precisar de tanto remédio. Eu acredito de verdade que as pessoas querem autonomia.

MidiaNews –  Então, essa pessoa pode estar tomando para tratar um sintoma, um desconforto, mas adquirindo outras enormes disfunções na rotina dela ou até mesmo um problema sério de transtorno?

 

Manoel Vicente – Com certeza. Imagina, a pessoa começou a tomar antidepressivo porque estava com estresse da família. Nós sabemos que a ideia não é essa. Se você está com estresse na sua família, se você tem uma dificuldade no trabalho, o tratamento é resolver o estresse e a dificuldade. Não é alterar seu cérebro para desligar o incômodo. Então quando a pessoa usa esse recurso de tomar o remédio, não percebe que está alterando a função cerebral dela.

 

Os remédios são alteradores de função cerebral. E se meu cérebro está funcionando na normalidade, se meu corpo está funcionando na normalidade, eu começar a manipular o funcionamento dele, posso começar a ter esses sintomas que vão estar sempre ali. Aí, às vezes, a pessoa está tendo crise de ansiedade por causa do remédio, está mais deprimida por causa do remédio.

 

 

 

MidiaNews – O senhor defende a desprescrição médica. Me conta mais sobre esse processo e quais são os sinais de que um paciente está pronto para reduzir ou deixar as medicações com segurança?

 

Manoel Vicente – A desprescrição é o trabalho de deixar as pessoas bem sem precisar de tanto remédio. Eu acredito de verdade que as pessoas querem autonomia. Querem conseguir se virar na vida. Uma amiga minha falou que, às vezes, a pessoa está tomando um remédio, está sendo cuidada, está fazendo um tratamento, está fazendo uma terapia e fica que nem um peixe no aquário.

 

Entendo que o que as pessoas querem não é essa regulação constante. Elas querem aprender a nadar, querem se virar, querem autonomia. Quando a pessoa adquire maturidade emocional, amadurecimento, capacidade de se explorar, de se entender, tem a possibilidade de se regular emocionalmente sem precisar de uma intervenção química. Então o que eu provoco, trago e ajudo as pessoas a encontrarem é essa capacidade de autonomia nelas.

 

Quando a pessoa está disposta a explorar essa autonomia, vai buscando isso no processo de terapia e aí vamos, progressivamente, reduzindo as medicações. O que pode atrapalhar é que muitos, quando vão parar de tomar remédio, param abruptamente.

 

A retirada é muito delicada, dura meses, às vezes anos, dependendo da situação. Porque se retirar rápido, a pessoa tem uma recaída, e aí todo mundo vai falar que o transtorno atacou. Mas não é que o transtorno que atacou, é o efeito da retirada do remédio. Então, o estudo da desprescrição vem com essa intenção de trazer autonomia e de fazer uma redução adequada para que a pessoa não tenha recaídas,

 

MidiaNews – E pode existir casos onde a pessoa faça esse desmame e, no futuro, vê que não pode ficar sem ou precisa voltar a tomar. É normal também?

 

Manoel Vicente – Claro, com certeza. Até porque você tem situações como, por exemplo, transtorno bipolar. Esta é uma situação em que a pessoa tem desregulações de humor e que, na grande maioria das vezes, o remédio salva a vida dela. Então, o remédio ajuda muito e todo tratamento para transtorno bipolar da medicina tem remédio. Não existe tratamento na medicina para transtorno bipolar que não tenha remédio. Então, usamos medicação, passamos medicações e quando passamos não tem data para sair. Eu vou usar porque o remédio vai prevenir novas crises.

 

As pessoas vão se cansar de viver nesse limbo de oscilações reguladas só por comprimidos

MidiaNews – E tem pessoas que precisam tomar remédio para sempre, para vida toda?

 

Manoel Vicente –  Sim. Tem pessoas que vão ganhar muito com o uso do remédio, que precisam tomar. Então, é uma questão de identificar. É entender se existe uma doença e uma disfunção. O transtorno bipolar é uma doença. Para corrigir o transtorno bipolar, preciso de remédio. Agora, estresse no trabalho, dificuldade de lidar com a minha família, eu ter sofrido um trauma na minha infância, são processos que eu tenho como olhar, trabalhar e mudar, que o remédio não funciona. Quando estamos falando de estresse do ambiente, estresse do cotidiano, trauma de vida, remédio não adianta.

 

Quando estamos falando de doença e disfunção, uma esquizofrenia, um toque grave, talvez até um autismo grave, algumas situações assim, aí o remédio vai ajudar. 

 

MidiaNews – O que diria para alguém que acredita que a terapia não funciona porque não vê mudanças imediatas?

 

Manoel Vicente – O problema dessa pessoa é que ela quer mudanças imediatas. Provavelmente, quem quer mudanças imediatas vai parar no psiquiatra e no psicólogo justamente porque é um grande não apressado, acha que tudo tem que acontecer muito rápido. Então, a pessoa que quer mudança instantânea, provavelmente está focada na produtividade, em não sentir tristeza. Ela não quer sentir os sentimentos dela, não quer entrar em contato com nada. E esse não querer entrar em contato e achar que a cabeça dela vai ser resolvida como se fosse uma oficina, que aperta uns parafusos, é justamente o problema dela.

 

É um trabalho contínuo, que vale a pena e que se não quiser fazer, vai ter mais problema ainda na vida. 

 

MidiaNews – O senhor decidiu não atender mais pacientes que não estão em terapia. O que te levou a esse limite? Teve alguma experiência difícil que motivou essa escolha? 

 

Manoel Vicente – Eu decidi só atender pacientes que fazem terapia, porque eu trabalho com autonomia. Trabalho com estilo de vida, com mudança a longo prazo. Se a pessoa não quer autonomia, mudança de estilo de vida e transformação de longo prazo, não tem como estar comigo. Não tem como atender quem não quer autonomia e mudança de longo prazo. A pessoa que se recusa à terapia, é basicamente alguém que não está preparado para encarar as dificuldades que é amadurecer, superar traumas, fechar feridas. Ela não está preparada e eu respeito. Mas trabalho com quem quer. Essa é a questão. Então foi um ato de respeito por mim mesmo, sabe? De cuidar do que faço.

 

 

MidiaNews – Muitos pais estão normalizando e glamourizando postar seus filhos desde bebês nas redes sociais. Quais são os possíveis impactos psicológicos em crianças que são consequentemente expostas nas redes sociais? Porque os pais estão em busca de fama, estão em busca de monetização. Qual sua opinião sobre o assunto?

 

Manoel Vicente – Não consigo pensar nisso dando certo. Isso é problemático, complicado. São crianças que vão crescer sendo engolidas pelos algoritmos. A linguagem do amor ser engajamento. Os pais que estão colocando os filhos para serem influenciadores mirins, tem uma linguagem do amor que é engajamento e monetização.

 

Então, é evidentemente um trabalho de performance, que vários pais usam para satisfazer os sonhos que eles não cumpriram na própria vida. Esse é o grande drama dos artistas mirim, terem que se tornar a fonte de realização dos pais que não realizaram nada nas vidas deles.

 

São vários pais com desejos não realizados que tentam se realizar através do filho. Aí o filho se torna um instrumento de realização. Tem vários influenciadores bebês que não tiveram a menor oportunidade de escolher se eles queriam aquilo. Como vai ser a noção dessa criança de vontade própria? É algo bastante complicado que eu não recomendaria e eu desejo muita sorte, muito auxílio para essas crianças.

 

MidiaNews – Você fala muito sobre como trauma molda a personalidade. Como foi o seu processo de identificar e trabalhar os seus próprios traumas? Algum deles te influenciou a seguir essa linha?

 

Manoel Vicente – Sim. Eu só vi que trauma era importante quando fui resolver os meus. Não tem como entender trauma se você não explorar os seus. E assim que foi comigo, conforme eu ia explorando, ia percebendo que aqueles sintomas que eu tinha, um quadro de ansiedade, uma dificuldade de falar em público, uma insegurança, alguma coisa assim, fui percebendo que tudo isso era manifestação desses processos não resolvidos.

 

E era fantástico, porque conforme eu ia explorando esses processos, tudo que acontecia e tudo que me prendia aqui no cotidiano, as minhas inseguranças, as minhas travas, iam se desfazendo. O processo de explorar trauma é fantástico, porque traz contexto para aquilo que chamam de sintoma. Começo a perceber que os sintomas não são o problema. Os sintomas são como os problemas se manifestam. E aí quando vou atrás de resolver o problema, encontro muito trauma e começo a realmente ficar bem de forma duradoura. Eu não passo a vida enxugando gelo.

 

 

 

MidiaNews – O senhor trabalha com educação em psicologia. Qual é o maior equívoco que os profissionais de saúde mental cometem ao diagnosticar pacientes hoje?

 

Manoel Vicente – O maior erro dos profissionais de saúde mental é confundir classificação com explicação. Os diagnósticos como transtorno de ansiedade generalizada e transtorno depressivo, são classificações de um conjunto de sintomas. Então a pessoa está triste, desanimada, com insônia. Eu vou juntar isso aqui, vou ver o grupo de sintomas e chamo de depressão, mas não expliquei por que que a pessoa está triste. Então, quando classifico, estou dando um diagnóstico sindrômico. Não estou dando um contexto processual do por que que a pessoa está daquele jeito.

 

E os profissionais chegam em uma situação que é assim: a pessoa está tendo crise de ansiedade. Por quê? Porque tem transtorno de ansiedade. Mas como que você sabe que ela tem transtorno de ansiedade? Porque ela está tendo crise de ansiedade. Você entra numa circularidade de explicação. Isso é rápido, acontece fácil. Nós somos quase treinados para entrar nessa explicação circular. 

 

O maior erro dos profissionais de saúde mental é confundir classificação com explicação

MidiaNews – Isso é um erro?

 

Manoel Vicente – Esse é o maior erro. Isso é perigoso, porque o profissional para de investigar processos individuais que fizeram aquela pessoa ficar daquele jeito. É como se a classificação virasse uma explicação e aí eu me contento. E isso é muito comum, isso acabou acontecendo por causa dos diagnósticos da psiquiatria. A psiquiatria precisava fazer os diagnósticos para organizar a linguagem. Vamos combinar o mesmo nome para o problema que a gente não entende? Vamos combinar. Então, combinamos nomes para os problemas que nós não entendemos. Chamamos isso de transtorno. Por isso que não fala a palavra doença. É transtorno, porque é uma incógnita. È uma noção que eu não sei o que é direito. 

 

Vamos chamar de transtorno porque a gente consegue combinar. Agora que chamamos de transtorno, vamos tentar explicar? E nós, desde a década de 80, estamos tentando fazer isso. E aí, quando você não sabe esse contexto histórico, começa a usar o transtorno como uma explicação. Aí que não dá certo. Não devemos nos contentar com esses estados de água morna, de ficar mais ou menos bem.

 

MidiaNews – Seu trabalho envolve desprescrever, mas também reeducar. Como ensinar os pacientes a escutar o seu corpo, sua mente? Sem depender de rótulos, de remédios, de métodos?

 

Manoel Vicente – Sim. Sabe o que provoco nos pacientes? É essa própria autenticidade e intuição que outras pessoas suprimiram deles. Então o que quero que a pessoa seja capaz de dizer? Ela chega para mim e fala que está triste. Eu quero saber o que a deixou triste. Ou melhor, o que tem na sua vida para te fazer feliz? Você está triste, certo? Eu não vou ficar com pretensão de achar que sua tristeza é uma distorção da sua cabeça. Eu só vou acreditar no que a pessoa fala. Vou entender o que ela fala e vou explorar essa sensação.

 

O trabalho que faço, dentro de um setting terapêutico, é basicamente trazer a pessoa para perspectiva que ela pode confiar naquilo que sente. Os pensamentos, eles muitas vezes traem a gente. Pensamento, às vezes, engana. Tem muita crença que a gente acredita com toda a força que é só conversa fiada. Agora, sentimento não costuma mentir. Sentimento costuma ser profundamente verdadeiro. E as pessoas foram convencidas a acreditar o contrário. 

 

MidiaNews – O chat de GPT já dá conselhos terapêuticos. O que um psicólogo humano tem que a IA nunca terá? E o que acha sobre essa prática?

 

O que o chat GTP nunca vai ter é esse trabalho que falei de explorar os próprios traumas

Manoel Vicente – Pedir um conselho para um cara que nunca namorou… Que triste. Não sabe nem o que é beijar. O que o chat GTP nunca vai ter é esse trabalho que falei de explorar os próprios traumas. Ele não vai conseguir jogar com a subjetividade. As grandes inteligências artificiais são modelos de linguagem e trabalham com palavras, mas existe uma quantidade gigantesca do ser humano que não está no elemento da fala. Não é possível de ser traduzido em algoritmos. Estou falando de subjetividade, emoção, sensação que não dá para falar. Isso não é possível de ser percebido por uma máquina.

 

MidiaNews – Mas acha errado essa prática de pedir um conselho?

 

Manoel Vicente – Eu acho que não faz nenhum sentido, porque não tem como ele dar um bom conselho. O psicólogo não é para dar conselho, é para te ajudar a desenvolver autonomia para você tomar decisões com sua cabeça. Então, o trabalho da psicoterapia não é te aconselhar, porque realmente se você for só aconselhar, aí tem trezentos livros e várias coisas para te aconselhar. Mas o trabalho da terapia é único, porque eu preciso entender por que essa pessoa que está pedindo conselho é tão insegura a ponto de não confiar no próprio taco e ter que pedir a uma máquina.

  

MidiaNews – A geração Z é chamada de preguiçosa e acomodada. Do ponto de vista psicólogo, o que mais te chama atenção sobre essa geração? Concorda com essa afirmação?

 

Manoel Vicente – Não acho que seja uma geração acomodada ou preguiçosa, mas é uma geração que foi acostumada a ter muito acesso. É uma geração que tem muito acesso a bens materiais e a tudo que é necessário para viver com conforto. É uma galera que tem acesso à moradia, à educação, a toda a base da pirâmide das necessidades humanas. E elas acreditam de verdade que isso vai continuar sempre lá.

 

E provavelmente vai, porque nós já desenvolvemos a humanidade a um ponto de realmente isso estar muito disponível. Então está sobrando recursos para muitas pessoas. Essa galera consegue trazer um valor para emoção e para aquilo que não é bem material, que é muito diferente de todas as outras. È uma galera que quebra totalmente as expectativas do que é uma vida feliz. O que é uma vida feliz? Uma vida bem vivida. Enquanto antes era ter uma casa própria, um carro e vários filhos, talvez a vida feliz seja simplesmente viajar em casal.

 

É um grupo que vem para questionar algumas certezas e algumas verdades que tínhamos antes e isso parece preguiça, parece um acomodamento, mas eventualmente é só uma forma diferente de se relacionar com o mundo. 

 

Eu como o velho que sou, sempre vou ter uma visão mais antiquada, como todas as gerações. Como a geração antes de mim também tinha uma visão antiquada da minha, também achava que eu era, sei lá o quê, que era perdido. Então sempre existe essa sensação, mas no fim das contas, quem vai salvar o futuro são eles, não são os velhos que estão vivos agora.

 

 

 

MidiaNews – Como você vê o futuro para o tratamento da depressão e dos distúrbios daqui 20 anos? Qual o futuro da psiquiatria?

 

Manoel Vicente – O futuro da psiquiatria vai acontecer quando as pessoas que estão inseridas nesse modelo atual perceberem que ele é limitado. Estamos chegando numa curva que é do esgotamento da paciência das pessoas com essa história. Com a forma como é explicado. Tem muita gente que nunca foi na psiquiatra, nunca recebeu nenhum tratamento. Essas pessoas têm muito o que crescer, espero que consigam receber atendimento. Mas tem um número cada vez maior de pessoas que já foram, já foram medicadas, já fizeram o que tem para fazer e não melhoram.

 

Essas pessoas vão se cansar de viver nesse limbo de oscilações reguladas só por comprimidos. Vão perceber que isso esgota, vão perceber que isso não funciona. Como eu percebi com os meus pacientes. Eu simplesmente ouvia e prescrevia. Não tenho nada contra remédio, não tenho nada contra diagnóstico, eu uso, mas percebo que é limitado em alguns pontos, não resolve tudo. Não tem como resolver tudo usando só uma ferramenta.

  

O futuro da saúde mental vai acontecer e vai melhorar muito nos próximos anos, porque as pessoas vão perceber o esgotamento do modelo atual. Esse modelo está se esgotando já, é o que todo especialista fala, inclusive com os organizadores desse modelo. O futuro da saúde virá quando as pessoas perceberem que tem mais coisas aí. Tem muito mais na saúde mental do que os diagnósticos classificatórios. E tem muito mais saúde para ser encontrada quando você foca em autonomia, desenvolvimento de valores, de propósito. Ou seja, quando começarmos a falar de saúde, realização e florescimento, ao invés de falar de transtornos e doença, nós vamos ter mais saúde. Essa que é a virada de chave. Vamos ter um futuro bem mais feliz.

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